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Criança precisa de referências para construir identidade
Quando se desconhece as próprias origens, é-se levado a acreditar em histórias que, verídicas ou não, são comumente narradas de acordo com interesses. Mesmo sem evidências palpáveis, sedimentam-se nas mentes as versões. Joseph Goebels, chefe da propaganda da Alemanha nazista, disse que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. A frase nos permite refletir sobre o papel dos meios de comunicação no exercício da desinformação - uma estratégia dos servicos de inteligência para transformar a maneira como as pessoas interpretam os acontecimentos e a realidade.
Sujeito a manipulação, o nosso juízo sobre vários assuntos talvez esteja equivocado devido à omissão de informações pelas fontes e à disseminação de notícias falsas. Diante disso, a pergunta que devemos nos fazer sobre a nossa identidade é das mais importantes. E a resposta certa é, sem dúvida, o “salvo-conduto” que nos liberta da ignorância, dos conflitos internos que nos atormentam e nos aprisionam, pois o nosso objetivo deveria ser quem nascemos para ser. Mas, quem somos nós?
Esse foi o título de um documentário, lançado em 2004, nos Estados Unidos, e que teve grande repercussão em razão dos depoimentos de profissionais do campo da ciência e da religião. Eles buscaram estabelecer uma relação entre as diferentes linhas de pensamento, tendo como ponto de partida e denominador comum a física quântica. Um ano mais tarde, o livro “Além de quem somos nós?” (tradução em português pela editora Madras, São Paulo, 2006), sob o rótulo de não autorizado ou afiliado aos produtores, foi lançado com a proposta de “esclarecer as lacunas deixadas pelo filme”. Na sequência, não faltaram críticas às obras, pelo fato de ambas (filme e livro) estarem - segundo outros estudiosos - “distorcendo os principais conceitos da mecânica quântica”.
Episódios como esse expõem a troca de farpas no meio científico, ao mesmo tempo que contribui para desmitificar a ciência (seus adeptos também são suscetíveis a erros e acertos como qualquer outro) e dão vozes a diferentes concepções a nosso respeito: a de que seríamos energia ou consciência em movimento, memórias, construtores (ou coconstrutores) da própria realidade, enfim. Independentemente do que corresponde à verdade, contemplando o ser humano apenas a partir da sua concepção neste plano material, é sabido que, durante a gestação, ele recebe as “primeiras” informações genéticas, sensoriais - uma bagagem que leva para a vida. Após o nascimento, a mãe é quem, a princípio, se encarrega de lhe prestar os primeiros cuidados, e de fazer a sua conexão com o mundo.
Na vida em sociedade, essa tarefa extrapola o ambiente materno, o núcleo familiar, tornando-se tarefa coletiva. Há um ditado africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Mesmo que os pais intuitivamente sigam um padrão, surgem novos entendimentos sobre temas que os envolvem, além de ocorrerem fatos que impedem a sustentação do que transmitem oralmente aos filhos, a exemplo dos recorrentes e curiosos incêndios ao longo da história, que eliminam patrimônios históricos, devastam uma série de referências e tradições.
A ausência de referências é algo que tem preocupado até escritores, conforme noticiado pelo site Terra. Assim teria descrito o momento que recebeu a notícia de sua premiação com o Nobel de Literatura, em 2018, a escritora polonesa Olga Tokarczuk: "Eu estava em algum lugar sem nome entre Berlim e Bielefeld (noroeste da Alemanha), o que considero significativo porque esse lugar sem nome é uma boa metáfora para o mundo em que vivemos hoje: vivemos um tempo em que perdemos muitas referências de orientação".
Ainda segundo a reportagem, ao discursar sobre literatura, a escritora polonesa considerou os livros lentos para espelharem a realidade, colocando em dúvida sua eficácia. “Precisamos de tempo para expressar o que sentimos e o que nos rodeia. Às vezes, me questiono se é possível descrever esse mundo ou se estamos perdidos diante do desaparecimento de parâmetros de referência”.
O comentário de Olga Tokarczuk faz-me pensar: se desejamos às novas gerações que, aliadas ao seu acervo pessoal de impressões, levem referências e valores que consideramos importantes para a sua vida futura, conhecendo a origem dos princípios, das ideias que movem suas vidas, podemos começar criando com elas ou para elas um banco de dados sobre sua herança cultural, seu desenvolvimento e formação. E assim instigar-lhes até mesmo o interesse por ferramentas de autoconhecimento, o que contribui para torná-las menos propensas às versões que não correspondem à realidade.
Digo isso também em virtude do impacto da tecnologia na sociedade. A internet mudou vários aspectos da nossa vida, inclusive a forma de transmitir conhecimento. Muito da comunicação passou a ser virtual e as pessoas perderam o hábito de interagir com quem está perto para fazê-lo com quem está distante. Um estudo da Universidade Columbia, publicado em julho de 2011, na revista Science, mostrou que ferramentas de busca, a exemplo do Google, mudaram a forma como o cérebro humano se lembra de informações: “Esquecemos de coisas que estamos confiantes de que podemos encontrar na Internet e, por outro lado, estamos mais propensos a lembrar de coisas que achamos que não estão disponíveis on-line“, revelaram os pesquisadores.
Falar com o bebê é o primeiro passo
O bebê percebe quem o aguarda, assim como começa a entender o seu lugar, a partir da comunicação com ele estabelecida. Há um artigo interessante da psicóloga Nanda Perim, intitulado “Converse com sua criança. Ela tem o direito de saber verdade”, publicado na coluna Psimama, do jornal A Gazeta, de Vitória/ES, no qual ela diz que “o bebê precisa dessa conversa para começar a se organizar e saber o que esperar daquele espaço que ocupa, daquela relação da qual faz parte”.
Como demonstrado pela neurobiologia, nos primeiros anos de vida a criança se percebe como uma extensão da mãe, não se vê separado daquela que dela cuida. As conversas são boas oportunidades para a estimular. Permitem que ela comece a entender o universo que a cerca, a compreender os sons da linguagem e a leva a imitá-los.
Não se deve desprezar o fato de que, antes mesmo que possa falar de forma clara suas primeiras palavras, o bebê já passou por meses de aprendizado intenso, no qual aprendeu, do emaranhado acústico dos ritmos, de sons concatenados, a diferenciá-los e a conectá-los com pessoas, objetos e sentimentos. Os pais lhe deram suporte, quando articularam para ele nítida e continuamente “mamãe”, “papai” e outras palavras. E o bebê tentou por si mesmo expressá-las, balbuciando, tagarelando, gritando, expandindo-se e aproximando-se do padrão de som que lhe fora pronunciado. Através da repetida ligação entre palavras e objetos reais ou ilustrados, finalmente ele aprendeu que esse padrão de som algo significa. O sorriso e a aprovação da pessoa com quem estabelece contato também sinaliza à criança que sua palavra foi corretamente empregada.
“Bebês produzem seus próprios sons já a partir do segundo mês de vida. Do sexto ou sétimo mês de vida, de acordo com análises e pesquisas, soam os sons dos bebês, diferentemente, em diversas línguas maternas. Que linguagem e emoção estão inextricavelmente ligadas e que sem ambas não poderíamos sobreviver, sabemos desde o cruel experimento do imperador Friedrich, da dinastia dos Staufers, para sondar a origem do idioma. Nele, um grupo de recém-nascidos, embora mantido sob cuidados, foram proibidos de receber qualquer tipo de afeto ou contato. Os bebês morreram alguns meses depois”. (ORIENTIERUNGSPLAN FÜR BILDUNG UND ERZIEHUNG FÜR DIE BADEN-WÜRTTEMBERGISCHEN KINDERGÄRTEN, 2006)
Nos momentos de interação com sua criança, portanto, ajude-a a se certificar de quem realmente ela é, e fortaleça o seu sentimento de pertencimento, reiterando:
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o nome dela completo e sua filiação;
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os dados de nascimento (data, local, fatos que marcaram o dia);
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suas especificidades (calcule de brincadeira sua altura e faça a medida, periodicamente, com uma fita métrica; calcule seu peso e confira-o com uma balança; mostre-lhe as diferentes cores de olhos e de pele existentes e “descubra” a dela, assim como a diferença entre os sexos e qual seria o dela. Com a ajuda de um espelho, as brincadeiras tornam-se ainda mais divertidas);
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onde ela mora ou endereço (quando der sinais de que já consegue memorizar);
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o número de seus documentos, a começar pelo registro de identidade;
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números de telefone para chamada de emergência, quando já souber usar o aparelho e precisar apertar o botão “segurança”.
Organize uma pasta para documentos originais, tais como:
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certidões,
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matrículas;
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boletins;
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certificados;
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correspondência pessoal.
Monte um fichário para documentos sobre saúde:
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visita a médicos, dentistas e especialistas;
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carteira de vacinação;
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carteira de raio-x (se não tiver à disposição, crie uma própria, para mensurar a quantidade de radioatividade recebida num determinado período);
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receitas médicas, bulas de medicamentos, resultados de exames;
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uso de órteses e próteses;
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histórico de reações alérgicas, doenças, intervenções;
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terapias, práticas alternativas adotadas;
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anotações sobre nutrição (intolerância ou suplementação alimentar);
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correspondência de seguradoras e órgãos de saúde.
Documente o desenvolvimento por meio do portfólio
Quem já não ouviu falar em portfólio? Existem diferentes tipos: de profissionais, de produtos e serviços, de obras de arte etc. O portfólio é uma pasta com a seleção dos trabalhos de maior relevância de uma pessoa física ou jurídica. Nele estão, de modo geral, não apenas as atividades, mas a forma como foram realizadas, sendo de grande significância para todos os envolvidos. No âmbito da educação, o portfólio foi adotado para documentar a formação da criança, os primeiros passos ou o momento em que foi percebido um avanço de sua habilidade, por exemplo, quando começou a andar ou o esforço que fez para alcançar um objeto que adquiriu significado para ela.
No meu trabalho diário, focamos em aspectos como motricidade (fina e grossa), linguagem, cognição, competência social e emocional, valores e tradição familiar. Há diferentes instrumentos de observação (formulários, escalas) e critérios de trabalho. Em alguns estados da Alemanha, há orientação de órgãos governamentais para que as instituições mantenham o foco em mais aspectos, como cuidados com o próprio corpo e jogabilidade (habilidade nas brincadeiras). Identificando competências e interesses, pode-se impulsionar a criança e identificar deficiências a serem trabalhadas e/ou corrigidas nos primeiros anos de vida, quando as chances de sucesso são maiores.
Tanto as crianças como seus responsáveis têm acesso corriqueiro a essa pasta e levam-na consigo, quando deixam de frequentar a instituição. Lá estão fotos, histórias de aprendizagem, seus primeiros contos, expressões artísticas, tentativas de escrita, registro de relacionamentos sociais e de participação em atividades pedagógicas, passeios e eventos. Quando autorizado pelos pais e viabilizado pela Instituição, integram ainda o conjunto arquivos com gravações em áudios e vídeos.
Faça sua árvore genealógica
Embora muitos cresçam desconhecendo os próprios ancestrais ou considerando a genealogia uma ciência a serviço de dinastias, a árvore genealógica é um estudo que nos possibilita revisitar o passado. Também nao é apenas uma lista de nomes organizados por geração, como já foi percebida, mas a descrição de ligações biológicas entre diferentes pessoas e gerações, permitindo que conexões entre elas sejam estabelecidas. A árvore genealógica mostra a origem e evolução dos membros de uma linhagem e pode ajudar na compreensão e no estudo de heranças genéticas, na solicitação de nacionalidade estrangeira (por parte dos membros de uma família que tenham ascendentes oriundos de outros países), entre outras singularidades.
Reúna as receitas preferidas
A gastronomia tem função importante na convivência familiar, pois representa o compartilhamento de prazeres e emoções com aqueles que nos são mais próximos. Prepare alimentos na companhia da criança, pois o sabor passa a representar momentos agradáveis e, com isso, ela constrói o que conhecemos como “memória afetiva”. Com o passar do tempo, as receitas “da vovó” são esquecidas e agrupá-las é uma forma de mantê-las vivas na lembrança da família. A princípio, escreva as receitas, experimente-as com a criança, e faça as adaptações sugeridas por ela e que talvez sejam necessárias para que ela continue tendo vontade de praticá-las.
Se desejar, posteriormente, aproveite o tempo disponível, quem sabe um fim de semana chuvoso ou as férias em casa, para montar um livro de receitas. Foi o que eu fiz com as receitas da minha infância e o meu livro (foto) me serve de referência de receitas brasileiras para cozinhar com as crianças que acompanho.
Valorize técnicas milenares
A vida está cheia de teorias, muitas não sustentadas cientificamente, mas que, nem por isso, deixam de ter o seu mérito reconhecido. Ao longo da história, diferentes civilizações desenvolveram técnicas e ferramentas para produzir objetos necessários à sobrevivência, ao conhecimento e para vislumbrar formas de otimizar suas ações.
A numerologia é uma delas. Acredita-se que os números revelem mais sobre nós do que imaginamos e, de acordo com os que se ocupam do assunto, eles guardariam a sabedoria de uma linguagem muito antiga.
Embora difundida no Ocidente, a numerologia teria surgido no Oriente. Pesquisadores apontam o sul da Mesopotâmia, região onde hoje está localizado o Iraque, como local de surgimento do sistema numerológico caldeu, um dos mais complexos. Com o passar do tempo, surgiram diversas linhas de estudo, sendo a numerologia pitagórica o ramo mais moderno dessa que passou a ser considerada pela comunidade científica como uma pseudociência, “por carecer de provas ou plausibilidade”.
O filósofo grego Pitágoras acreditava que os números não eram apenas símbolos para quantificar coisas - ele próprio preconizava que o universo em si poderia ser explicado pela matemática. “Baseado em seu método, a primeira letra do nosso nome revelaria características que se carregam para o resto da vida; a soma das vogais, conforme sua tabela, resulta num número que descreveria a alma, a essência mais pura do ser; o número resultante da soma das consoantes falaria da persona, da nossa personalidade (a impressão que causamos em outras pessoas); enquanto que a soma da data de nascimento revelaria a lição de vida, o que a pessoa teria vindo desenvolver nessa passagem pela Terra”, diz a artista plástica e numeróloga Lu Francco, que mantém um perfil no Instagram para interessados.
“Considere que todos esses números são fixos, não são mutáveis, é do dia em que se nasce e vale até o último dia da vida, pois o estudo é feito com o nome de nascimento”, acrescenta a artista. A partir de uma análise numerológica, seria então possível ter uma visão panorâmica da própria vida, do ciclo no qual se encontra e até determinar o momento mais propício para agir diante dos desafios. Seria possível também identificar vocações e levantar informações sobre si mesmo até então despercebidas.
Outra ferramenta milenar de entendimento da personalidade humana é o mapa astral, que tem como base de análise a posição dos planetas no momento do nascimento da pessoa. Mais do que os signos do zodíaco, como conhecemos, a astrologia seria um conjunto de cálculos complexos que determinariam um sistema no qual a pessoa estudada é o centro e está interligada com os astros ao seu redor.
Também considerada pseudociência, por não estar compatível com as regras básicas dos procedimentos que produzem o conhecimento científico, a astrologia sempre caminhou junto com a astronomia, como mostra sua história. Ela está, de algum modo, presente em todas as culturas, exercendo papel de influência. Sua separação da astronomia só ocorreu no século 18, quando foi removida oficialmente do meio universitário. O cisma, especula-se, teria sido motivado pelo nosso sistema de dominação, para manter essa linguagem simbólica fora do alcance das massas, que não creditaria mais confiança em um instrumento a ser usado a seu próprio favor.
Referência:
QUEM SOMOS NÓS. Do original "What the Bleep Do We K)now!? Documentário completo, dublado em português. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dQAUs87pHb8/
BRUCE, Alexandra. Bleep: Além de quem somos nós? Tradução de “Beyond the Bleep: the definitive unauthorized guide to What the Bleep do you (k)now!?“ por José Arnaldo de Castro. São Paulo: Madras, 2006.
BRASIL, Ubiratan. Olga Tokarczuk discursa na Alemanha sobre a força política do livro. TERRA, 2019. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/olga-tokarczuk-discursa-na-alemanha-sobre-a-forca-politica-do-livro,a663e8e76171d08ff7514fa1c5ee9878ewt2fvtt.html/
PROFESSOR NEWS. Estudo da Universidade de Columbia conclui que memória funciona de forma diferente na era Google. Disponível em: https://www.professornews.com.br/utilidades/dicas-e-tecnicas-de-ensino/379-estudo-da-universidade-de-columbia-conclui-que-memoria-funciona-de-forma-diferente-na-era-google.html/
PERIM, Nanda. Converse com sua criança. Ela tem o direito de saber verdade. A GAZETA, 2020. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/colunas/psimama/converse-com-sua-crianca-ela-tem-o-direito de-saber-verdade-0520
ORIENTIERUNGSPLAN FÜR BILDUNG UND ERZIEHUNG FÜR DIE BADEN-WÜRTTEMBERGISCHEN KINDERGÄRTEN (Pilotphase). Teil B: Bildungs- und Entwicklungsfelder des Kindergartens - Sprache. 1ª edição. Weinheim und Basel: Editora Beltz, 2006.
LISBOA, Claudia. Astrologia. BLOG ASTROLOGIA LUZ E SOMBRA, 2019. Disponível em: https://astrologialuzesombra.com.br/astrologia/
VIDAL, Titi. Astrologia: das origens ao divórcio com a ciência. CONSTELAR, 2017. Disponível em: https://constelar.com.br/comunidade/memoria/astrologia-divorcio-com-a-ciencia